Tributo a Arthur Moreira Lima celebra o pianista que derrubou barreiras
Enquanto a música clássica segregava, Moreira desbravava o país abrindo caminhos para apresentar ao povo brasileiro a beleza do piano e da música popular
Sandra Peixoto – jornalista / Fotos Renner Boldrino e Sandra Peixoto
28 de outubro de 2025
A genialidade do pianista Arthur Moreira Lima estava na simplicidade que aproximava a música das pessoas. Falecido há quase um ano, o pianista foi homenageado na 16ª edição do Festival de Música de Penedo (Femupe), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), com o Tributo a Arthur Moreira Lima, sexta-feira (24), reunindo os talentosos Leandro Cabral (SP), Saulo Gama (BA) e Antonio Eduardo (SP) em um recital na Igreja Santa Maria dos Anjos.
Enquanto a música clássica criava barreiras elitistas, Moreira desbravava o país abrindo caminhos para apresentar ao povo brasileiro a beleza instrumental do piano: era o projeto "Um piano pela estrada", que promoveu recitais em mais de 500 cidades brasileiras; muitas delas não tinham sequer um exemplar do instrumento. “De certa forma, este seria o seu maior legado: influenciar gerações, quebrar a barreira do elitismo da música clássica e transformar em realidade o preceito da canção de Milton Nascimento, o de que o artista deve ir aonde o povo está. E ele amava o povo”, falou emocionada Beatriz Moreira, filha do pianista, ao ler a mensagem de sua irmã, Martha Moreira, que não pode estar presente à homenagem.
Com a habilidade de quem podia tocar os maiores compositores clássicos, Arthur Moreira preferia democratizar o piano com músicas populares. Isto não significa que ele desmerecia o erudito, mas apenas que buscava concretizar, por meio da música, o que trazia em seu coração. “Sentia as dores do mundo e podia ficar dias obcecado com a guerra na Ucrânia ou com a política nacional. Reconhecia o talento e o valor em pessoas que viviam invisibilizadas na nossa sociedade. Era um pianista com uma alma russa e uma ginga carioca. (...) Ele acreditava apenas na igualdade de classes. (...) A música era sua forma de expressão mais sutil”, escreveu Martha.
À fala da irmã, Beatriz acrescentou que o pai tinha um carinho especial por Alagoas. “Tinha aqui um grande amigo, o doutor Ismar Gato, que além de ter sido figura fundamental para viabilizar um importante concerto dele com a Orquestra de Câmara de Moscou, em Maceió, em 1993. Ainda no início dos anos 80, emprestou-nos uma casa na praia da Garça Torta, onde passamos um memorável mês de férias com ele. (...) E está aí uma coisa que nem a morte pode nos arrancar: a memória. Por isso agradeço mais uma vez ao professor Marcos Moreira por esta homenagem ao meu pai em um festival que tem tudo a ver com um projeto ao qual ele tanto se dedicou, levando música e cultura a todo povo brasileiro. Enquanto ele for lembrado, permanece vivo na nossa memória”, disse.
Inspiração e paixão pelo Velho Chico
Esse jeito único de vivenciar e compartilhar a música fez com que o maestro inspirasse músicos de diferentes gerações, tanto em vida quanto após sua morte. Um deles é o pianista, compositor, arranjador e educador, Leandro Cabral (SP).
Pela primeira vez no Femupe, o músico se encantou não apenas com a proposta do evento, mas também com a cidade e, principalmente, com o Rio São Francisco. E estar neste contexto participando da homenagem ao maestro “é um sonho. O Arthur Moreira Lima é um divisor de águas na história do piano mundial, porque com toda a experiência dele do piano clássico, os anos que ele passou na Rússia, os concursos que ele ganhou... ele volta para o Brasil e faz questão de abraçar a Música Popular Brasileira. Fez questão de gravar praticamente todos os grandes compositores brasileiros populares. Gravou o Tom [Jobim], o Gil, o Caetano, o Chico, discos inteiros homenageando Dorival [Caymmi]. Aquele caminhão dele descendo o Rio Amazonas em cima de um barco, isso é uma coisa de gênio; é coisa de almas muito grandes que querem compartilhar a beleza que elas acessaram”, definiu Leandro, que reconhece a música como fundamental para a saúde mental e afetiva para poder “olhar o mundo com mais doçura e mais serenidade”, complementou.
Para ele, que começou a tocar aos sete anos de idade, a escolha do repertório foi difícil, pois apesar de ter selecionado cerca de 20 músicas, não conseguiu definir quais delas apresentaria. Para isso, contou com uma ajuda especial. “Olhando para o Velho Chico eu sentei lá num local, tomei um açaí, fiquei olhando para o rio e falei “o que vai ser hoje à noite”? Porque eu não sou um pianista clássico, eu sou um pianista popular de orientação jazzística e a música não é uma coisa rígida, 100% pensada. Muitas coisas acontecem na hora ou no dia. Então, vindo passar o som, teve um arranjo que mudou, eu falei, ‘acho que eu vou fazer assim hoje’”, explicou.
Não é preciso dizer que o recital emocionou, mas vale registrar que o Festival proporcionou ao músico um retorno à São Paulo com uma bagagem que ultrapassou a honra de tocar na homenagem ao maestro Arthur Moreira Lima, pois, agora, além da paixão pela música, compartilha com o homenageado a paixão pelo rio São Francisco. “Música e rio, pra mim, têm tudo a ver porque eu sinto a música muito aquaticamente. Acho que é por isso que eu também fiquei tão apaixonado pelo rio. Quando eu estou tocando, parece que estou sendo meio que tomado num barco, num flow”, afirmou, ao acrescentar que sairá de Penedo inspirado para compor uma música para o Velho Chico.
A noite de homenagem a Arthur Moreira Lima aconteceu na Igreja Santa Maria dos Anjos e também teve recital de piano com Leandro Cabral (SP), Saulo Gama (BA) e Antonio Eduardo (SP). Alémde recital de violino, com Alessandro Penezzi (SP), e apresentação do Coro de Penedo, com regência de Patrícia Albuquerque.
O maestro sob os olhos da filha
Para conhecer um pouco mais sobre a vida e a obra do pianista Arthur Moreira Lima, nada melhor do que ‘vê-lo’ sob a perspectiva de quem cresceu com ele. Por isso, disponibilizamos a íntegra da mensagem de sua Martha Moreira, e que foi lida por sua irmã Beatriz Moreira. Segue:
Agradeço muitíssimo pelo convite a este festival. Infelizmente não posso estar presente, mas confio que tanto eu como meu sobrinho, Chico Lira, estaremos muito bem representados pela Beatriz. Escrevi algumas linhas para esta ocasião e espero que dê a vocês uma ideia de quem era o nosso pai. As saudades são imensas, mas tenho certeza de que ele adoraria esta homenagem em um festival como este, aqui no Nordeste. Afinal, nossa família paterna vem de Campina Grande e Maranhão, e perto deste rio que ele tanto amava. Papai amava o Rio São Francisco. Tocou ao longo dele um dos primeiros projetos do Caminhão Teatro, que mandou construir para realizar o seu sonho, levar a música para plateias que não tinham fácil acesso ao piano.
Em 2004, em Montes Claros, ao norte de Minas, fiquei emocionada ao ver um menininho negro, engraxate dos seus sete ou oito anos, assistindo fascinado ao concerto. Ele olhou para mim e disse: “quando eu crescer, quero fazer a mesma coisa que ele, também quero tocar isso aí”. Me deu uma tristeza imensa, porque afinal, o piano sempre foi um instrumento caro e de difícil acesso. No entanto, ao longo dos anos, em mais de uma ocasião, fui abordada por músicos jovens, a sua maioria do Nordeste, que me disseram ter decidido seguir a carreira de pianistas após ver o meu pai tocar em algum dos seus concertos do Caminhão. De certa forma, este seria o seu maior legado, influenciar gerações, quebrar a barreira do elitismo da música clássica e transformar em realidade o preceito da canção de Milton Nascimento: “o artista deve ir aonde o povo está”.
E ele amava o povo! Me lembro de, mais de uma vez, ele deixar algum prefeito local ou pessoa considerada importante falando sozinha, para ir conversar com o chofer de táxi, do caminhão ou com o garçom e o pessoal do boteco mais próximo. As elites superficiais o entediavam. Também não ficava horas falando sobre música. Preferia discutir política, futebol e contava anedotas da vida cotidiana. Dizia que seu maior sonho era ser locutor de futebol, mas que não tinha tido escolha.
Desde criança, fora arrimo de família, com uma mãe viúva e uma irmã um pouco mais velha que nunca se casou. Conhecia o mundo inteiro, mas não gostava de viajar a passeio. Adorava um PF bem-feito. Era extremamente culto: podia discutir qualquer tema com o conhecimento de causa. Tinha até medalha de matemática. Sentia as dores do mundo e podia ficar dias obcecado com a guerra na Ucrânia ou com a política nacional. Reconhecia o talento e valor em pessoas que viviam invisibilizadas na nossa sociedade. Era um pianista com uma alma russa e uma ginga carioca.
Havia muita pressão de amigos, inclusive da nossa mãe, Eliana Cardoso, que também fora pianista, para que ele se dedicasse de corpo e alma apenas à música clássica. Afinal, tinha tido uma carreira brilhante, com prêmios nos concursos Chopin, Leeds e Tchaikovsky. Era famoso em toda a União Soviética e do leste europeu ao Japão. Tive a sorte de acompanhá-lo à Polônia, quando foi jurado do concurso Chopin, em 2021, e era reconhecido por muita gente e falava em polonês com os garçons.
Uma vez disse, entre risonho e irritado, que não entendia a obsessão dos músicos clássicos com a igualdade das notas. Ele acreditava apenas na igualdade de classes. E nesse sentido adorava fazer molecagem. Quando foi diretor da Sala Cecília Merelles, no Rio de Janeiro, a segunda maior sala de conceitos da cidade, resolveu dar o nome do bar da sala de João Saldanha, uma homenagem ao treinador de futebol comunista.
Quando se divorciou pela primeira vez, no final dos anos 70, após morar muitos anos em Moscou e Viena, voltou ao Brasil e começou a tocar e gravar com vários músicos populares, muitos deles do Nordeste, como Elomar, Heraldo do Monte e Xangai, para mencionar apenas alguns. A música era sua forma de expressão mais sutil.
Quando vendeu o caminhão e veio a pandemia, ficou muito deprimido. Tentava levantar o ânimo dele dizendo que agora ele teria tempo para outras coisas, que todo mundo se aposentava. Finalmente, num destes telefonemas perguntei irritada: “mas pai você não imagina a sua vida sem um piano?”. E ele respondeu categoricamente: “Não”.






















